terça-feira, 20 de novembro de 2007

O amigo Aníbal

No restaurante, frente e frente, com o estrépito da clientela como ruído de fundo e umas migalhas de pão espalhadas sobre os pratos, aguardamos que tragam as espetadas na grelha. O papel colocado por cima da mesa, por esta altura, já está todo rabiscado com estruturas em forma de pirâmide - círculos e traços - e com cálculos de valores e percentagens.

O Aníbal, de testa franzida, acaba de escrevinhar mais umas contas. "É fácil," diz-me (e recordo-me dele como um rapaz de cabelos compridos, botas da tropa e t-shirt dos Metallica, que se sentava lá atrás na sala de aulas, e atirava papelinhos húmidos pelo canudo da bic), "É só arranjarmos mais meia-dúzia de marmelos interessados e temos o negócio feito! Para o mês que vem já está a dar lucro"

O sorriso que lhe vejo no rosto é inseguro; treme aos cantos, de nervosismo, empapado por pequenas acumulações de saliva espumosa.

"Aníbal," pergunto-lhe, "Há quanto tempo te inscreveste?"

"Faz amanhã três semanas."

"E quantas pessoas já tens por baixo de ti?"

"Tenho a Teresa, pá. Conheces a Teresa? Aquela rapariga com quem namorei?"

"Sim, lembro-me vagamente dela. E mais?"

"E tenho mais uns quatro ou cinco gajos a pensar no assunto. Mas sei que vão aceitar. São pessoas porreiras, lá do trabalho."

Cruzo os braços por cima da mesa e foco-me nos olhos dele, "Porque é que te inscreveste nisto, Aníbal? Cheira-me a esturro."

"Mas não, Pedro, não é. O gajo que me meteu disse que era certinho. Um mês, dois meses, e estava a ganhar dinheiro."

"E tu foste na conversa, assim sem mais nem menos?"

"Eu confio nele, pá. É um gajo atinado, que não se mete nas coisas assim sem mais nem menos. Ele estudou as probabilidades. Disse-me que era coisa fiável. À confiança."

"Mas mostrou-te alguma coisa em concreto?"

"Sim, Claro. Fomos ver uns sites na net - a propósito, tenho de tos passar para veres com os teus próprios olhos -, entramos até na rede de comissões, e mostrou-me quanto ganhava o tipo que o meteu..."

"Na rede de comissões?"

"Sim. É onde podes controlar os teus braços e as pessoas que consegues meter. Está muito bem pensado aquilo, pá. Se quiseres vais lá a minha casa que eu mostro-te, não custa nada..."

"Resumindo... já falaste com toda a gente que conhecias e agora estás a tentar vender o negócio aos antigos colegas."

"Epá, mas é sempre numa de apresentar um negócio porreiro, hã? Não é a pensar só em mim. Juntos podemos conseguir, pá. Com a tua ajuda isto vai andar para a frente. Que me dizes? O investimento inicial é bué pequeno. Se não der, também não perdes grande coisa. Vinte contos por mês não é nada!"

"E se o sumo não presta? E se é tudo uma grande tanga?"

"Pedro, pá, vê os sites primeiro, e depois decides, está bem? Nos sites tens informações exactas sobre a qualidade do produto. Aquilo é muito bom. É patenteado, faz bem à saúde. Tens lá os certificados todos de qualidade. Ninguém constrói um negócio se o produto for uma merda, não é? Vai ver."

"Mas porque é que eles não vendem isso nas farmácias, por exemplo? Não acredito muito nessa história. Parece uma aldrabice. Como aquele esquema da Herbalife, há uns anos atrás. O produto era muito bom, mas tinhas de pagar um balúrdio e recrutar pessoas para ganhares algum"

"Pá, o esquema é parecido, mas não tem nada a ver. A Herbalife era uma porcaria. Este não é... funciona de outra maneira. Ouve, o gajo que meteu o João está a fazer 15.000 euros por mês. A sério. Ele mostrou-me os papéis."

Chegam as espetadas. O empregado afasta a calculadora para o lado e pousa as travessas na mesa. O Aníbal continua a olhar para mim, à espera de uma resposta.

"Aníbal, vamos comer, está bem? Eu prometo que vou investigar o assunto."

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